Entrevista de Elizabeth de Portzamparc concedida ao Jornal Estado de Minas.
Sua arquitetura contemporânea integra-se à paisagem de forma harmoniosa. É assim, com um trabalho ancorado em práticas responsáveis, que a carioca de alma parisiense Elizabeth de Portzamparc vem conquistando o mundo.
Casada com o não menos renomado arquiteto Christian de Portzamparc, ela mora na França há 40 anos, mas confessa ter fortes ligações com Minas Gerais. É que sua família é de origem mineira. A arquiteta, urbanista e designer, Elizabeth tem ainda formação em sociologia, antopologia e planejamento urbano. De mais a mais, não esconde a paixão pelo Brasil, e motivos não faltam para isso. Seus dois filhos moram aqui. Desde que deixou o planejamento urbano para se dedicar ao designer, à concepção das formas, não parou de ser premiada. Seu mais novo projeto, o Musée de la Romanité , de Nîmes, na França, foi o vencedor de um acirrado concurso que contou com a participação de 103 arquitetos estrelados de todo mundo.
Conte-nos sobre sua ascendência mineira
Sou carioca, de família de origem mineira, de Belo Horizonte
e de Diamantina: Matta Machado e Jardim Neves, da qual me orgulho que
alguns de seus membros tenham
contribuído para escrever algumas das belas páginas de abertura da história do Brasil: a abolição por João da Matta
Machado e por Silva Jardim, que foi também um dos fundadores da República, ou,
mais recentemente, Tancredo Neves. Também meu pai, Wilson Jardim Neves, contribuiu
modestamente com seu trabalho de advogado trabalhista para a reforma de algumas
leis obsoletas do Código Civil. O primo de meu pai, Ivo (Jardim) Pitanguy,
poderia ter se contentado de exercer na sua clínica de cirurgia plástica, mas
não só operou de graça um dia por semana na Santa Casa de Misericórdia do Rio,
como financiou para este hospital público a compra de equipamentos sofisticados
de cirurgia plástica e lá formou várias equipes de cirurgiões nestas últimas décadas. Estes fatos traduzem bem a mentalidade
familiar muito unida há vários séculos em torno de ideais humanistas.
Como você avalia a arquitetura e o urbanismo no Brasil?
O Brasil teve grandes arquitetos que marcaram a história da arquitetura
mundial: Lúcio Costa, Vianova Artigas, Oscar Niemeyer, Eduardo Reidy, Lina Bo
Bard, Sergio Bernardes, só para citar os grandes ícones. Todos eles foram
reconhecidos no meio da arquitetura como grandes talentos excepcionais e
marcantes. Atualmente, o nome de Paulo Mendes da Rocha honra o Brasil na cena
internacional e foi um dos últimos arquitetos a receber o Pritzker Prize, o prêmio
Nobel da arquitetura, que aliás o Niemeyer recebeu também há vários anos. Mas,
agora, quero falar do imenso impacto que teve a obra do nosso querido gênio nacional,
que tive a sorte de conhecer desde pequena. O conjunto da Pampulha provocou
varias revoluções e a primeira delas foi nada menos do que o nascimento da
arquitetura contemporânea.
Fale-nos dos aspectos determinantes de um projeto
O contexto e o uso. Apesar de minhas pesquisas sobre a
leveza dos volumes me levarem a adotar certos elementos recorrentes no meu
vocabulário arquitetural, como os jogos de deslocamento de volumes ou a utilização
de formas depuradas e econômicas, cada projeto é único para mim, pois pensado
para ser construído num lugar único e preciso. Alguns críticos vem denunciando o
desprezo pelos aspectos funcionais ou a poluição estética para as cidades que
representam os excessos formais ou decorativos que vemos em varias obras atuais
realizadas por grandes escritórios conhecidos. Mas este movimento de ideias
aborda, sobretudo, os aspectos estéticos
e não denuncia, infelizmente, a arquitetura recente concebida mais como um “logo”
comercial, a serviço do marketing e tão celebrada nas mídias atualmente, nem o
que é mais grave ainda, perda da noção de utilidade social da arquitetura e,
sobretudo, a perda da noção de integração ao contexto. É muito importante
atualmente reagir à perda de identidade própria das cidades, ou à destruição
das paisagens naturais consequentemente à difusão de modelos internacionais sem
nenhuma relação com a cultura e a historia local, e sem nenhum respeito às
tradições construtivas, aos materiais locais e ao meio ambiente.
Musée de la Romanité, em Nines, Sul da França. Com este projeto, Elizabeth de Portzamparc venceu o acirrado concurso que contou com a participação de 103 arquitetos.
A que especificamente você faz críticas
A teoria de laissez-faire total dominou a cena mundial
destes últimos anos, e seus mentores fascinaram o meio arquitetural por suas
atitudes provocadoras e hedonistas herdadas da pop art. Teorizando a
incapacidade dos arquitetos e urbanistas de transformar o mundo real, alguns
mentores desses movimentos preconizaram um urbanismo do absurdo, pela
exacerbação dos traços principais da sociedade de consumo e da cultura da massa
e abandonando todo ideal utopista de transformação social e a ideia de uma
arquitetura ou urbanismo a serviço do homem e da melhoria das suas condições de vida.
Esses projetos baseados na ideia de divertir o homem suscitando
surpresas, emoções imediatas foram dominado a cena mundial da arquitetura,
gerando uma competição em produzir formas exuberantes, esculturais e gratuitas,
sem nenhum vinculo com a cultura própria da cada lugar e desprezando com
ostentação a missão humanista da arquitetura, e isso tem descaracterizado nossas cidades. Nenhuma das duas tendências se
preocupou com a identidade própria da cada cidade, com a especificidade das
culturas locais, com a especificidade de cada “ecossistema”. A identidade de
cada lugar, de cada cidade é um assunto importante para o turismo: para os
moradores é fator de vinculo social, de coesão, pois contribui para gerar o
sentimento de “pertencer” a um lugar especifico.
O que basicamente caracteriza um lugar?
É necessário criar um ambiente que exprima valores coletivos
facilmente identificáveis pelos moradores, elementos simbólicos que exprimam a identidade
de um lugar, a fim de que seus moradores os reconheçam e se apropriem das
cidades como um bem coletivo no qual eles se reconheçam. Não é possível construir
um projeto sem conhecer, entender a cultura própria de cada cidade, de cada
país, de cada lugar. Sem o conhecimento não pode existir respeito à cultura própria
de cada lugar. Creio que esse assunto é
de interesse geral, sobretudo pensando neste momento que a construção está se
desenvolvendo num ritmo acelerado no brasil. Esta evolução poderá contribuir
para melhorar a identidade das cidades brasileiras. Ou para destruí-las. Qualquer
que seja a forma de trabalho,
arquitetural ou urbanístico, nós, arquitetos, temos o dever de corrigir as consequências
nefastas da globalização. Temos que voltar a colocar o homem e nossa
civilização como objetivo principal da nossa atividade. Temos que procurar
soluções especificas de cada país, de cada meio ambiente, de cada ecossistema.
Como fazer para apurar esse olhar do arquiteto sobre o
entorno?
Em relação a paisagem urbana histórica, a Unesco recomenda
aos profissionais ler as cidades como uma estratificação de valores imateriais
e culturais, e de tecer laços entre conservação e planificação, a fim de que a
identidade das cidade não seja limitada à arquitetura e aos monumentos, mas também
aos múltiplos aspectos imateriais baseados na cultura local. Assim, uma
reflexão sobre a identidade das cidade deverá abranger o conhecimento de todos os aspectos do modo
de vida local e de integra-los nos projetos urbanos, propondo a criação ou preservação de meios, permitindo a existência dos
diversos aspectos da cultura local:
arquiteturais ou imateriais. Além dos aspectos físicos e visíveis arquiteturais, no nível urbano é
imperativo propor nos espaços públicos ou na arquitetura da esfera privada elementos
que permitam a prática de costumes próprios a cada cultura. Esse tema tem sido um dos tópicos centrais do
meu trabalho, seja em arquitetura ou em urbanismo, e tive a sorte de tratar
desse assunto numa escala metropolitana em Bordeaux, em um projeto que
começou há 15 anos, em 1997, e que esta sendo concluído agora, projeto que
inclui o centro histórico e mais seis cidades periféricas.
O que seus projetos querem comunicar ao mundo?
As formas de praticar a arquitetura e urbanismo com objetivos
de preservação do patrimônio humano ou ambiental. Maneiras de praticar nossa
profissão, numa perspectiva antagônica às atitudes predatórias praticadas por
alguns profissionais ainda não conscientes da nossa responsabilidade social.
Temos que voltar a colocar o homem e nossa civilização como objetivos
principais da nossa atividade. Temos que
procurar soluções para compensar a perda das identidades especificas de cada
país, de cada meio ambiente, iniciadas no período moderno e acentuadas no período
contemporâneo, exprimindo por meio da decadência dos espaços das nossas cidades
e da nossa própria civilização. É só
assim, reunindo nossos esforços respectivos, poderemos contribuir para a
construção de uma arquitetura mais digna e mais humana, que não reflita ausência
de valores, como é frequentemente o caso
da arquitetura atual. Criaremos assim uma arquitetura ecossistêmica que
respeite os contextos urbanos, físicos,
culturais e ambientais. A meu ver, essa será a característica principal da
arquitetura do futuro, a arquitetura pós-contemporânea.
Fonte: Jornal Estado de Minas, edição impressa e veiculada em 06 de janeiro de 2013.
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